Graciliano Ramos
Fuvest 2020
Trata-se de um livro de memórias. A história começa com o narrador, protagonista e onisciente, de pé, após convalescença decorrente de uma crise de nervos, como se chamava àquela época.
É um grande monólogo interior, ou seja, narrado em primeira pessoa, desse modo, o leitor passa o tempo todo dentro da cabeça do narrador. Nessa conversa consigo mesmo há expressa muita culpa e muita mágoa da vida através da mente de um personagem atormentado por traumas de infância e fantasmas interiores que afloram sob a forma de uma perversidade crônica aplicada às pessoas que o rodeiam e a ele mesmo.
Sabe-se logo no primeiro parágrafo que algo estranho aconteceu por causa da tensão com que a história começa.
Das visões que me perseguiam daquelas noites compridas umas sombras permanecem, sombras que se misturam à realidade e me produzem calafrios.
Percebe-se uma aproximação estética com o expressionismo, por flertar com a morte ou tê-la como solução dos problemas que o perseguem. O objetivo principal dessa corrente artística era priorizar as emoções e os sentimentos em detrimento de uma descrição objetiva da realidade. Apesar dos sentimentos, tudo é contado de maneira bastante racional, com uma visão muito distante da romântica ou mesmo da naturalista pertencentes a movimentos literários anteriores.
Através de ideias conflitantes que mesclam passado, presente e futuro, uma vida inteira é repassada pela cabeça atormentada de Luiz da Silva, sua pobreza e suas misérias.
Filho de uma família de fazendeiros decadentes do sertão de Alagoas, sua infância foi privada de amor e de qualquer tipo de conforto. Desde o início de sua vida, a pobreza decorrente da decadência financeira, apresentada através das descrições das terras que restaram e do desequilíbrio emocional apresentado pela própria família, perseguem-no de maneira incômoda, colaborando para a formação do adulto infeliz que se tornou. Sua inteligência o torna mais deslocado e socialmente isolado, pelo discernimento que tem da sua realidade que, como bem sabe, jamais lhe dará a oportunidade de uma vida mais prazerosa ou de um trabalho mais produtivo e menos repetitivo.
Quando pequeno, ele mesmo descreve-se como uma criança solitária, que brincava sempre sozinha e que aos doze vê-se sem família e ajudado pela caridade de uma família conhecida. A lembrança do seu pai indolente que nada fazia, do seu avô, tido como modelo de vida, e da avó que falava sozinha são sensações recorrentes ao longo da narrativa, surgindo assim, um personagem complexo e muito bem traçado pelo narrador onisciente, que se julga sem nenhuma autocomplacência, mas também não consegue controlar seu espírito pouco amoroso e vingativo.
As sensações são sempre de angústia, daí o título da obra. A narrativa corre através de uma angústia palpável porque sempre justificada pela pobreza ou pelo abandono na infância ou pelo exemplo de homem forte materializado na figura de seu avô: Trajano Pereira de Aquino Cavalcante e Silva. Pelo nome pomposo, nota-se um passado importante relegado a umas vacas magras e adoentadas, um restolho de terra seca, e dois miseráveis empregados que se mantinham auxiliando essa disfuncional família. Talvez por desespero, o avô bebia muito e sua avó falava sozinha pelos cantos xingando escravas que não existiam, talvez reminiscências de tempos mais abastados. Seu pai passava os dias na rede, indolente, sem fazer nada para melhorar a situação, somente sonhava lendo Carlos Magno e torcia pela vitória de um pequeno partido político local. Apenas Quitéria e Amaro, empregados antigos, lá permaneciam e tocavam o pouco que restara.
As lembranças de infância, do sertão, de seu avô e de sua avó servirão como exemplos a serem seguidos e assombrarão seus pensamentos ao longo da narrativa, mesclando passado e presente o tempo inteiro.
Outra obsessão que irá infernizar o protagonista é Marina, a única mulher que considerava digna de se casar, porque não era da rua da Lama e com quem relacionou-se mais intimamente. Em suas memórias, apenas prostitutas baratas, que trocavam sexo por comida mantiveram contato mais íntimo com o narrador. Uma intimidade descrita com bastante realismo, sobretudo se considerarmos a época em que foi escrito. Marina era sua vizinha, de uma família muito pobre e desiludida, mantinha uma ambição por considerar-se bonita e interessante e por isso almejava um casamento que a tirasse da vida humilde que levava com seus pais. Após alguns breves encontros sensuais, por isso mesmo furtivos, durante a madrugada silenciosa e solitária e após perceber que Marina guardaria com cuidado sua valiosa virgindade, Luiz a pede em casamento, meio que impulsionado pelas suas necessidades sexuais. Sem perceber que está intimamente apaixonado, faz um empréstimo para que Marina possa fazer um enxoval para a vida de casados e assim oficializar o compromisso. No entanto, o que lhe parecia muito dinheiro, pois era o adiantamento do salário de um mês inteiro, para Marina não era nada, pois comprou apenas algumas poucas peças pessoais muito caras, totalmente incompatíveis com as posses do futuro marido e com a realidade social em que viviam.
Um outro fantasma, contudo, sempre rondou a cabeça do narrador: Julião Tavares. Figura reacionária, convencional, pouco inteligente e mau caráter, insistia em ser amigo de Luís, que, por sua vez, sempre o odiou. Com o tempo, passou a encontrá-lo pela vizinhança com uma certa frequência, o que só lhe causava mais arrepios.
Por ser de família rica, Julião Tavares iludia moças ambiciosas e pobres até tirar-lhes a virgindade. Naquele tempo, uma mulher solteira que não era virgem estava fadada à humilhante solidão. O tabu era muito forte e o prazer de Julião era enganá-las porque uma vez grávidas, mandava as amantes para uma mulher que fazia abortos na periferia de Maceió e posteriormente as abandonava, sem a menor consideração. Dessa maneira, conquista Marina com roupas, com promessas jamais cumpridas e passeios em lugares finos, portanto, a frívola e iludida jovem passa a desprezar Luís que, orgulhosamente, abre o caminho para que ela seja feliz à sua maneira. Tem de engolir, porém, mais essa frustração, mais essa perda.
Quando Luís se dá conta do golpe e da índole cafajeste do homem que odiava intuitivamente, fica obcecado com a ideia de matá-lo. Sente imensa pena de Marina, um misto de paixão e muita raiva por ter sido trocado e ódio profundo por Julião que só conseguia enganar moças ambiciosas e pobres por causa do dinheiro que tinha. Essa obsessão passa a perseguir sua mente já perturbada e resolve fazer justiça, tal qual os justiceiros do árido sertão em que nasceu.
Certa noite, após segui-lo, esgana literalmente Julião com uma corda, acha que um parasita social dessa natureza não merecia viver, deveria ser morto por ele, o único a ver o quão nocivo aquela criatura era para a sociedade e para a vida das mulheres que prejudicou, incluindo Marina. No entanto, após o crime, acaba morrendo de medo de ser preso e condenado, tem pavor da vida na cadeia. A culpa e o medo fizeram com que ficasse doente e o crime não traz a satisfação que achou que teria. Mas não foi pego e no início da narrativa, ele está tentando tocar a vida, contando suas memórias em um livro. Apesar do ódio por Marina, a paixão não se arrefeceu, pois ainda está apaixonado, só que agora mais infeliz consigo mesmo por tudo o que passou e fez.
Cabe ressaltar alguns pontos que tornam a obra extremamente moderna e fruto de um grande escritor: o sexo é descrito com naturalidade, sem juízo de valor, simplesmente como parte fundamental da vida e da qual ninguém tem muito controle, vale ressaltar que foi lançado em 1936. Apaixona-se por Marina pelo sexo, pelas pernas, pelo corpo, mesmo achando uma mulher fútil e de pouca cultura. Os desejos são descritos com muito realismo sem sequer resvalar no vulgar. A consciência de que a infância seja superprotegida como a de Marina seja sem amor como foi a sua vai afetar a vida de uma pessoa para sempre escapa da simples visão determinista pela profundidade reflexiva e psicológica que alcança com os personagens. É um livro que será sempre moderno pelo tanto que se aproxima da realidade humana, das mazelas e dificuldades de um mundo em que importa a imagem e o poder do dinheiro, sem fantasias nem muito menos um final feliz.